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INTRUSÃO SOCIAL PELA ARTE*
 
por José Tonezzi**
















No próximo dia 30 de novembro será lançada em Campinas uma trupe teatral caracterizada sobretudo pelo inusitado e, literalmente, pela diferença. Trata-se da Companhia de Arte Intrusa, cuja maior distinção será o envolvimento de atores com deficiência. Pessoas, aliás, que até bem pouco tempo poderiam ser denominadas inválidas (o termo é forte, mas é este mesmo) pelas suas condições incomuns de expressão, comunicação e/ou constituição física. Diferentemente de uma prática puramente terapêutica ou pedagógica, a proposta é a busca de um procedimento artístico, que não considere as ditas deficiências como empecilho ou limitação, mas, ao contrário, perceba-as como matéria efetiva de criação teatral e experiência estética.

Embora pareça oportunismo tratar do assunto num momento em que toda a mídia se volta para a questão, enaltecendo as capacidades e enfatizando a necessidade de inclusão social do deficiente, é importante lembrar que todo esse interesse é, na verdade, fruto de um movimento anterior, envolvendo pessoas e instituições que, de maneira séria e intermitente, vêm tratando do assunto. Isso, além da própria atuação de deficientes que, nas mais diversas áreas, se impõem pelo talento e pela autonomia de, suas vidas. Num mundo ainda bastante avesso às diferenças, essas pessoas fazem valer a máxima do pintor francês Toulouse-Lautrec, também ele deficiente, de que somente quando a deformidade expõe uma genialidade é que ela deixa de ser ridícula.

Singularidade. Eis aí um termo instigante para os dias de hoje, em que se é levado, quase todo o tempo, a uma padronização imposta desde o comportamento até a maneira de pensar. E não se percebe o diferente (sobretudo, o deficiente) se não por meio da ironia, da compaixão ou de um certo constrangimento. Poucas vezes admitida com o devido reconhecimento, a singularidade é, na verdade, a marca de cada um de nós que, antes de sermos "normais", somos nós mesmos.
A performance artística está ligada à ação, interação e relação, o que faz com que o elemento performático possa estar numa simples aparição pública de um indivíduo com características diferenciadas. Basta lembrar o constrangimento que, em geral, causa o
contato com o diferenteRecentemente, durante uma mesa redonda no SESC-Campinas, o artista plástico Marco Aurélio Tomeleri, o Peninha, emocionou a platéia ao obrigá-la a perceber a dimensão e as possibilidades da expressão e da comunicação humana. Afásico, com extrema dificuldade para verbalizar os seus pensamentos, ele mostra-se, mesmo assim, com coragem suficiente para expressar suas idéias. Então a performance está posta. Uma "obra aberta" como disseram alguns.

Portanto, caso seja capaz de se apropriar e se valer conscientemente de suas particularidades, a pessoa com deficiência terá para si um poderoso recurso de expressão cênica, em geral alcançável pelo ator sem deficiência somente após um efetivo trabalho de preparação.
Obviamente, apenas o fato de ser diferente não garante um bom resultado artístico nem confere automaticamente a qualidade de ator ou criador cênico a uma pessoa com deficiência. Mostra-se imperativo, mesmo neste caso, uma competência poética para a constituição da cena. Daí a importância de uma triagem, visando a seleção daqueles que se mostrem minimamente sensíveis à tarefa de expressão e criação, além de um estágio que os integre ao universo cênico e os leve ao seu entendimento considerando, é claro, as suas características e limitações.

O objetivo de um projeto como a Companhia de Arte Intrusa passa, necessariamente, pela busca de alternativas dramáticas e expressivas, cuja matéria prima se funde nas diferenças e na diversidade explícita, valorizando a constituição específica de cada indivíduo. Para tanto, o projeto prevê a constituição de um elenco para criação e produção de espetáculos. Essa interação de atores/performers com algum tipo de deficiência, seja ela de ordem física, mental ou cognitiva, com atores sem deficiência sugere um procedimento diferenciado, capaz de deslocar o sentido da cena de uma estrutura convencional para manifestações enquanto fenômenos particulares. Isso, conseqüentemente, pode resultar numa instigante reflexão sobre o sentido de tal iniciativa no âmbito do espetáculo e sua incidência na relação entre a cena e o público.
Aliás, ao se auto-intitular e se dar como objeto uma Arte Intrusa, a Companhia contrapõe o discurso hipócrita (ainda que bem intencionado) de uma sociedade que se quer "do bem" ao fazer da inclusão uma mera concessão, o que resulta numa pseudo-integração da pessoa com deficiência. Neste sentido, sem dúvida, a iniciativa poderá contribuir para a superação da prática de inclusão como simples tolerância ou aceitação da pessoa com deficiência, propondo a sua efetiva integração e emancipação social, por meio do exercício artístico e profissional do teatro.
















*Artigo publicado no jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), em 23/11/2005.
**Diretor do Laboratório do Ator.